O MITO DE CANANÉIA E ERROS HISTÓRICOS
por Daniel Lúcio de Souza
Da mesma forma que a história é escrita pelos vencedores, erros de pesquisas históricas induzem os pesquisadores subseqüentes a manter erros mantidos por séculos como verdade, pelo fato de não serem questionados pela academia, o desinteresse dos formuladores e pesquisadores das navegações na Era dos Descobrimentos em aprofundar-se na discussão pontual da baía de Paranaguá, detalhes documentais e geográficos foram relegados ao esquecimento, inclusive por escritores com obras publicadas no início do século 21.
Como o mito de Cananéia, ocorreram sucessões de erros de citações históricas que passaram a ser utilizados por pesquisadores internacionais que potencializaram os equívocos. A atual ilha e cidade de Cananéia, demonstram que algum equívoco inicial nas primeiras navegações por estas águas do Atlântico Sul, batizou o local um outro local com este nome, mas não a Cananéia contemporânea. O primeiro argumento é simples, a sua topografia. Por ser ilha interior à porção continental, ao nível do mar e ser impossível sua visualização oceânica, não poderia à época ser considerada um acidente geográfico perceptível aos timoneiros e capitães em suas velejadas. Apenas uma visualização aérea, por meio de uma montanha, poderia identifica-la como "ilha", ao contrário das amplas barras e baías que formam o complexo estuarino de Paranaguá.O próprio pesquisador Antonio Paulino de Almeida, descreve a topografia de sua terra natal: "Tanto a ilha de Cananéia com a ilha comprida, todo o terreno é extremamente plano, existindo apenas em cada uma delas um pequeno morro defronte ao outro...", e quanto as aguadas para refresco das embarcações, sua dificuldade é justificada pelas considerações do mesmo autor ao comentar que "apenas o morro de São João, na ilha de Cananéia possui alguns pequenos veios de água potável, servindo-se a população rural de água geralmente salobras."
Quanto a ilha do Cardoso, que possui picos de até 890 metros de altura, e faz barra da baía de Cananéia pela sua extremidade nordeste chamada ponta do Itacurussá, o autor afirma que é "ao contrário, é excessivamente montanhosa e dotada de numerosas cachoeiras."[1]
Foi nesta ilha que foram encontrados os marco de posse e tenentes com a Cruz da Ordem de Cristo, que o próprio Almeida admite ter sido a expedição de Martim Afonso de Sousa tê-los chantado na entrada da barra em 1531. Atualmente no local acha-se a réplica do monumento, sendo que o original encontra-se no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Percebe-se na escultura uma nova forma da insígnia lusitana, onde a Cruz da Ordem de Cristo passa a ter influência da Cruz de Malta, ao contrário das de décadas anteriores.
O meridiano de Tordesilhas ainda era locado com precária precisão pela falta do domínio pleno do cálculo da longitude, e por esta razão contestada por ambas coroas signatárias do tratado: Portugal e Espanha. Para complicar a disputa pelas novas terras, havia a cobiça tanto de franceses como de holandeses. Cananéia e Laguna acreditavam os lusos, seriam portanto limite de possessão portuguesa, ao contrário, "eram terras castelhanas", diziam os espanhóis de Castela.
Mesmo em pleno século 21, com aferições geodésicas que nos permitem precisar que a atual cidade de Cananéia era território português, e portanto, não poder-se-ia conservar erros históricos como o fez o historiador Eduardo Bueno no decorrer de toda sua coleção Terra Brasilis (três volumes). Ao afirmar reiteradamente citações como: No volume II - Náufragos, Traficantes e Degredados, ao comentar a expedição lusa chefiada por Gonçalo Coelho, tendo como cosmógrafo Américo Vespúcio, e reconhecendo que estes perceberam estarem em terras espanholas, conforme prescrevia o tratado de Tordesilhas, Bueno cita que "ao zarpar de Cananéia , em 15 de Fevereiro de 1502, com água, mantimentos e lenha [...] a frota foi se afastando do litoral, guinando para leste - em direção à África."[2] , o que incorreto por duas razões: a primeira é que é incontestável na atual historiografia o alcance da frota, já então sob comando de Vespúcio, que esta chegara à latitude 53° sul costeando o continente, quase descobrindo o estreito que o luso Fernando de Magalhães e amigo de Vespúcio o faria em 1519 sob bandeira castelhana.
O segundo equívoco nesta citação, é de afirmar a saída da frota da atual Cananéia, inclusive com indicação em mapa desenhado pelo autor (p. 51). O mesmo Bueno repetiria no volume III - Capitães do Brasil, ao reiterar a posição errônea do meridiano, ao dizer "...já que a linha de Tordesilhas passava em Cananéia"[3] ou, "Além de Cananéia ficar dentro da zona espanhola da demarcação de Tordesilhas, ali os castelhanos poderiam contar com o apoio do Bacharel..."[4].
Mas afinal, o que teria levado tantas confusões e referenciais históricos até então mantidos?
O equívoco teria sido "oficializado" por Aires de Casal em 1817, ao afirmar que marcos de posse ali encontrados fossem obra da expedição lusa de Gonçalo Coelho e Vespúcio, se multiplicou e manteve-se até o início do século 21.Ao ser citada originalmente pelo frei Aires de Casal na sua obra Corografia Brasílica, de 1817, a ilha paulista passou daquele momento em diante a ser considerada como o local em que a expedição lusitana de Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho na latitude 25° do litoral sul de São Paulo e do Paraná.
O objeto que Ayres de Casal usou para montar sua tese ao descrever em seu livro de geografia brasileira, foi o marco-de-posse , com as armas da Coroa de Portugal, lá encontrado, sendo à época atribuído à expedição que partiu com três caravelas em 1501 para reconhecimento da costa brasileira, e aportou nas águas do estuário da baía de Paranaguá em Fevereiro de 1502.
Cananéia teria, ao longo dos séculos, influência decisiva na chegada dos primeiros homens brancos a fixarem-se no interior da baía de Paranaguá, além de ser um gargalo histórico na história das navegações do Atlântico Sul.
O Historiador e pesquisador Antonio Paulino de Almeida, escritor de uma das mais importantes obras relativas à história do local, desvenda uma sucessão de equívocos e citações que se multiplicaram por anos. Paulino era nascido na atual cidade de Cananéia, tendo ocupado o cargo de chefe da seção histórica do Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo, e membro da Sociedade de Estudos Históricos de São Paulo.
Em 1963 publicou os dois volumes de sua Memória Histórica Sobre Cananéia, base para os estudos sobre a região que impactaria sobremaneira a formação antropológica Parnanguara.Nos primeiros anos do século 16, a Ilha Cananéia era assim denominada pelos navegantes por razões ainda confusas, pois sua primeira citação consta no diário de bordo da expedição do navegador português Martim Afonso de Souza, em 1531, quando foi então nomeado pelo Rei de Portugal como donatário das principais terras da nova Terra de Vera Cruz, popularmente conhecida na Europa como Terra do Brasil.Assim, a Ilha do Bom Abrigo, que supostamente a expedição de Vespúcio (1502) teria batizado como Ilha da Cananea, com o passar dos anos cedeu seu nome às povoações e abrigos no continente.
Tanto que quase 30 anos depois, Pero Lopes de Souza repete em seu diário o achamento da mesma ilha oceânica (diário de viagem de 1532). Por décadas algumas confusões geográficas se mantiveram. A própria ilha de São Francisco do Sul chegou a ser chamada de "Rio de São Francisco do Sul da Cananéa". A diferença de um grau na latitude nas cartas de marear, era aceitável para a época, com descrições de topografias similares, eram por si só grande indutores a erros de navegação e de interpretação histórica.Até nos dias atuais do século 21, é comum que historiadores mantenham em suas referências bibliográficas e citações textuais equivocadas pela repetição de equívocos. Vespúcio, ao batizar o "Rio de Cananor", no extremo sul do continente, na atual Argentina, também foi motivo de confusões geográficas, como se fosse uma citação à "Cananéia".
Ora, foi a ilha do Bom Abrigo, que ao ser citada como "Cananea" no diário de Pero Lopes de Sousa, irmão e companheiro de viagem de Martim Afonso ao Rio da Prata, fez com que esta denominação migrasse à região continental frontal à ilha, e não o contrário. Até por impossibilidade visual do homem do mar avistar a atual ilha interior onde se estabeleceu a Cananéia moderna.
A própria etimologia do nome é por si só outro ponto de divergência de autores e pesquisadores. Uma corrente defende a origem tupi-guarani, sendo uma derivação das palavras caniné ou canindé , uma certa espécie de arara. Ocorre que na ilha nunca existiram este tipo de ave, e tão somente periquitos. As toponímicas indígenas a procura do significado desta são variadas. Some-se o fato de que ao chegar na Ilha do Bom Abrigo, o diário de bordo da frota de Martim Afonso confirmava ser esta a "ilha da Cananéa", deixando a forte impressão que sua localização estava prevista na carta.
Isto antes sequer de ir a terra contatar índios e degredados, numa velejada que teve início no Rio de Janeiro.O termo cananéia (grafia atual ) ou cananea (grafia antiga) é anterior ao próprio descobrimento do Brasil.
É milenar e bíblico.Talvez a mais convincente das explicações seja dada por Antonio Paulino de Almeida, que após citar passagens bíblicas onde o termo aparece no Livro de Mateus " a mulher cananéia, cuja filha Ele sarou."
O MARCO DE CANANÉIA - UMA TEORIA EQUIVOCADA
A atual cidade de Cananéia tem sido por 200 anos considerada como a baía na qual a frota de Vespúcio em Fevereiro de 1502 teria aportado e ali ficado por cerca de 15 dias.Tal teoria foi apresentada pelo padre Manuel Aires de Casal (ou Ayres de Cazal, como na grafia da época), em seu livro "Corografia Brasílica", publicada em 1817 e até o presente incontestada por diversos historiadores brasileiros, e citado como referência por diversos escritores estrangeiros.
Réplica do marco-padrão português: Expedição 1502 de Amérco Vespucio no Atlântico Sul, incluindo-se a baía de Paranaguá.
Esta tese tomou com fundamento o padrão de mármore com as armas do Rei de Portugal encontrado na barra de Cananéia, que hoje encontra-se no Instituto Históricos e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, que teria sido lá fixado pela expedição de 1501 na qual se encontrava Américo Vespúcio.Aires de Casal em sua obra, assume posição avessa a Vespúcio, comungando de uma escola que rotula o navegador florentino de forma negativa, e que formou opinião estereotipada e equivocada por diversas razões, reforçadas pela documentação incompleta das cartas e documentos relativos a ele, que mesmo no século XX continuaram a descobrir-se documentos inéditos que possibilitou aos estudiosos do homem que descortinou à Europa um "mundus novus" , e que só após 450 anos de pesquisas sua imagem foi por fim valorizada e confirmados seus feitos.
O historiador brasileiro Caio Prado Júnior, faz uma sincera introdução de "Corografia Brasílica" , na reedição da obra em 1945: " Do padre Manuel Aires de Casal... pouco se sabe. Quase tudo a respeito de sua vida são conjecturas e fatos duvidosos. Segundo Rodolfo Garcia, ele é natural de Pedrogan, Portugal, e já se achava no Brasil em 1796, servindo ao capelão da Misericórdia do Rio de Janeiro. Dava-se a trabalhos literários, pois encontramo-lo naquele mesmo ano copiando o manuscrito da Conquista Espiritual do padre Antonio Ruis Montoya.
Permanece no Brasil até 1821, quando se retira com o Rei para a Europa, onde falece pouco depois sem ter deixado a segunda edição.. que estava nos seus planos. Caio Prado resume: "Esta, que é a sua grande e na verdade única obra, saiu à luz na Impressão Régia, sob auspícios oficiais, em 1817.
"Para entender-se o ânimo e o perfil do homem que montou a teoria do padrão de Cananéia como obra da expedição lusa de 1501 na qual Vespúcio se integrara e passaria a comandar dali em diante, é necessário entendermos seu estilo de pesquisa que culminou na Corografia, que nas décadas seguintes passou a ser o manual para os estudiosos da geografia brasileira, ainda mais sob o patrocínio da Coroa Portuguesa.
Enquanto naturalistas e geógrafos europeus como Saint-Hilaire, Spix, Martius e outros, embrenhavam-se pelos sertões brasileiros coletando fatos, objetos, observando as populações regionais em todos os cantos do país e inferindo conclusões, Aires de Casal revolvia os volumes da Biblioteca Real no Rio de Janeiro e dos seus arquivos, à cata de informações.
Esta foi sua fonte de pesquisa.Como observou Prado Júnior: "Na parte geográfica é muito parco em notícias bibliográficas, quase não cita suas fontes, e é difícil reconstituí-las."
A referência que Aires de Casal faz ao marco de Cananéia, que passou a ser considerada até o presente como verdade inconteste, foi em razão da nota de n.º 42 da sua Corografia", quando escreveu: " Na entrada da barra de Cananéia, da banda do continente, sobre umas pedras, está um padrão de mármore europeu, com quatro palmos de comprimento, um de grossura, e as Armas Reais de Portugal sem castelos, posto que mais deteriorado do que muitos o pensaria, bem que se conhece que foi colocado em 1503. Continua Casal: "Este monumento prova com toda a evidencia que a armada que neste ano saiu do Tejo para examinar a Terra de Vera Cruz não retrocedeu do paralelo 18o latitude austral, como pretende o fabuloso Américo Vespúcio; e mostra também não ter sido colocado em 1531 como quer o moderníssimo [sem negrito no original], nosso beneditino Frei Gaspar, que não duvidou asseverar por conjectura que fora posto por Martim Afonso, depondo finalmente a nosso favor e contra Américo Vespúcio, que a armada de 1501 não tomou a costa oriental, ou não chegou a estas paragens, porque ela devia levar padrões para autenticar a posse que da terra se tomava."[5]
Ao pretender desqualificar a opinião contrária do pesquisador seu concorrente Frei Gaspar, chama-o de "moderníssimo" em plena corte portuguesa refugiada no Brasil, altamente conservadora e patrocinadora oficial sua obra.
Mas, passados mais de 180 anos da publicação da Corografia de Aires de Casal, pode-se agora afirmar que Frei Gaspar que tinha razão com relação ao marco-padrão encontrado na ponta do Itacurussá, na ilha do Cardoso, parte sul da barra de Cananéia: não fora expedição de Vespúcio que chantara [termo utilizado pelos navegantes para o ato de cravar e fixar ] o padrão ali encontrado.Na época em que pesquisou Casal (1800?-1817), com relação ainda aos marcos (padrões) documentados e registrados, dá como conhecidos na costa da América do Sul no sentido nordeste ao sul, cinco padrões: 1) Na Praia dos Marcos, entre a baía Formosa e a da Traição; 2) Na baía de Todos os Santos; 3) Na barra de Cananéia; 4) Na ilha de Maldonado e 5) Entre a ponta sul da baía de São Mathias e a Ponta do Padrão (Argentina). Fica a pergunta: Qual ou quais expedições os fixaram nestes pontos?
O ENIGMÁTICO BACHAREL DE CANANÉIA
Para um castelhano da época um bachiller significava um "tagarela", um hábil falastrão, ou seja , alguém com o dom da oratória. No português da época , bacharel também tinha esta conceituação, somente na atualidade é que o termo tem uma aplicação mais nobre: alguém graduado em uma faculdade, embora os dicionários ainda preservem o conceito arcaico de tagarela.
Casario antigo (hoje pousada) na localidade Porto do Bacharel, referência ao famoso personagem europeu habitante do Brasil (foto 1940)
Figura das mais controvertidas da história das navegações pelo Atlântico Sul, o Bacharel de Cananéia chegou a ser cortejado pela coroa castelhana para que empunhasse a bandeira daquele reino espanhol e com isto aquelas terras e mares teriam reconhecimento de posse como se espanhola fosse.O transito de expedições aportando na Ilha do Bom Abrigo, faziam com que o esperto Bacharel pendulasse suas preferências, ora por Portugal ora por Espanha. Em 21 de agosto de 1536 a rainha de Castela cria uma gobernación na costa do Brasil, para fazer frente a ousadia lusa de penetrar no continente além do meridiano de Tordesilhas, e a concede a Gregório de Pesquera Rosa, uma região costeira que iniciava-me na Ilha Cananéia (atual Bom Abrigo) e avançava para "rio de Santa Catarina", como cem léguas de este a oeste.
Desse modo, o atual Sul do Estado de São Paulo, todo o Paraná e Santa Catarina seriam uma província espanhola.Ocorre que o Rei de Espanha, sabendo que a decisão de sua Rainha confrontava com que ele havia doado por decreto a Dom Pedro de Mendoza, que partira de Espanha em Setembro de 1534 para colonizar o Rio da Prata, rasgou os documentos assinados por sua esposa. E assim retardou ou reclames castelhanos à estas terras por décadas futuras.Neste clima é que os degredados atuavam, fornecendo suprimentos às frotas por ali passageiras e auferindo vantagens materiais e políticas nesta "terra de ninguém".
Ao dizer que o Bacharel estaria há "trinta anos" naquelas terras, o diário de Pero Lopes de Souza (1531) remete-nos ao anos 1501, quando então teria sido levado à praia por algum batel ou bergantim lançado de alguma frota ancorada na Ilha do Bom Abrigo. Seria impossível supor que naus ou caravelas se atrevessem a entrar na estreita barra da atual Cananéia, com uma profundidade baixa "três braças na preamar" , velejando de empopada com vento leste, arriscando caríssimas embarcações apenas para desfazer-se de um criminoso a cumprir seu desterro, ou seria abandonado à própria sorte na própria Ilha do Bom Abrigo e posteriormente levado á terra por índios Carijó que ali acorriam ou levado à praia por embarcações menores por misericórdia do capitão, o que é mais provável.Mas que expedição teria para lá levado tão sinistra figura? chegam a afirmar que teria sido a de Américo Vespúcio e Gonçalo Coelho. É possível.
O calendário florentino tinha um anos a menos do que o calendário ibérico, ou seja, as cartas de Américo Vespúcio a seus amigos de Florença, eram datadas pelo calendário praticado por seus patrícios e destinatários das boas novas do Novo Mundo.
Assim, ao datar 1501, Vespúcio estava na verdade em 1502 pelo estilo português e espanhol, daí a confusão que muitos historiadores cometeram ao datar suas viagens.É possível que ao zarparem da Ilha do Bom Abrigo em Fevereiro de 1502, a expedição comandada por Gonçalo Coelho, com Vespúcio a bordo, tenham lá deixado ou desembarcado nas praias da Ilha Comprida, o degredado Cosme Fernandes, que viria a ser chamado de Mestre Cosme e por fim Bacharel, por suas habilidades intelectuais.Este homem serviria para referenciar-se o primeiro homem branco europeu no estuário Cananéia-Iguape-Paranaguá, bem como fundamentar as teorias da ancoragem da flotilha de Vespúcio na atual "Cananéia".
Ora, se fosse possível provar que o tal Bacharel foi deixado em terra pela expedição de 1502 (1501 pelo calendário florentino), conectando-se com o encontro da frota de Martim Afonso com os portugueses e castelhanos no mesmo local em 1531, além de atribuir-se a expedição de Vespúcio a colocação do marco-de-posse luso encontrado na ponta de Itacurussá (na Ilha do Cardoso), estaria assim provado que fora lá que a expedição esteve por quase duas semanas no verão de 1502.Foi o pesquisador Ernesto Guilherme Young, nascido em Iguape, Estado de São Paulo, ao dedicar anos de pesquisa sobre a figura polêmica do Bacharel, foi quem, por fim , publicou trabalho no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde enfim desvenda tão misterioso personagem, através de profundo trabalho amparado por documentação e aval daquela instituição.
O misterioso bacharel, enfim, era o português Cosme Fernandes, sogro de Francisco de Chaves, que desaparecera na expedição de Pero Lobo em 1531, cuja eloqüência e esperteza seguramente lhe conferiram este apelido. Em documentos datados de 1542 da Capitania de São Vicente, então sob jurisdição de Martim Afonso, seu capitão e ouvidor Antonio de Oliveira transcreve uma Carta de Confirmação, na qual aos oficializar a posse de terras, cita com clareza o nome de Cosme Fernandes, o "bacharel", já então dono de terras no Porto das Naus, em São Vicente.
Também em Iguape, surge documento no qual ele manifestava seu arrependimento e temos por sua alma pelos cometidos, e preparava seu testamento no Livro do Tombo da vila ao deixar que o notário registrasse:"Cosme Fernandes, pessoa de grande merecimento [nosso grifo], deixou em seu testamento declaração de que suas terras ficam oneradas com a pensão anual de uma missa para todo o sempre, pelo descanso de sua alma, sendo como é um grande criminoso [não destacado no original], ficando o pároco encarregado de arrecadar esta dita pensão dos seus herdeiros."
Na mesma região à beira mar, foram localizados nos séculos seguintes herdeiros de terras com o sobrenome "Fernandes" , com observações de que eram devidas as pensões para custear as missas pelas "almas do purgatório", do famoso "mestre Cosme", como apareceu em muitas outras referências de navegantes portugueses e espanhóis em sua Relações [relatórios de viagens].Mesmo pesquisadores contemporâneos , além de confundirem-se com esta figura até então enigmática, equivocaram-se até com a transcrição do seu nome de forma correta. Um exemplo é o historiador Eduardo Bueno, quando no se livro Náufragos, Traficantes e Degredados afirma tratar-se de "Cosme Fernandes Pessoa"[6] [meu grifo], quando na verdade o sobrenome "Pessoa" foi acrescentado de forma errônea, pela leitura do pesquisador no documento original chamaram-no de "pessoa de grande merecimento".Sua importância naqueles tempos para os que lançavam-se às estes mares e terras, chegou a impressionar a corte espanhola, a ponto de ser citado em ofício da Rainha de Castela em 9 de Setembro de 1536, no ato de nomeação de Gregório de Pesquera como gobernador destas terras.
A rainha pede ao bachiller apoio à missão de sue enviado, e em troca lhe promete que "....por certo mandarei ter em memória de vosso serviços para os fazer à vós e à vossos filhos o merecimento que tenha lugar..." [7]Este homem, conhecedor da região, bem relacionados com os Carijó, com cujas mulheres fora casado e teve filhos com elas , prestou serviços a muitos navegantes e timoneiros que dirigiam-se aos mares do sul.
O domínio da língua tupi e guarani, o conhecimento de trilhas e águas que adentravam ao continente, foi provavelmente um dos primeiros europeus a adentrar com barcos à vela e canoas nas águas da baía de Paranaguá , por ser integrante da frota de Vespúcio, corroborado por diversos pesquisadores, como E. Bueno ao citar Francisco de Varnhagen, "o bacharel fora deixado pela expedição de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio em 1502 (o que corresponderia aos aproximados 30 anos aos quais se referiu Diego Garcia)."[8]
Esta observação também constou nas anotações de Pero Lopes de Sousa ao chegar na ilha do Bom Abrigo em 1531.Mas teria Cosme Fernandes, o bacharel, ficado imobilizado e confinando em uma pequena ilha interior por 30 anos após ter sido aceito pelos Carijó e constituído vasta prole assumindo seu papel na comunidade indígena? Certamente que não. A mobilidade e a citação desta figura tão conhecida e ativa na região, por si permite ao pesquisador inferir que ao ser degredado pela justiça portuguesa e cumprido pela frota de Vespúcio na expedição de 1502, pode ser dado tanto no interior da baía de Paranaguá, junto aos índios Carijó, como em São Vicente, junto aos Tupininquim.
A história confusa e contraditória de Cosme Fernandes, tem ligação direta com a correta locação do nome geográfico cananéia, pois onde foi desterrado, reencontrado e depois se relacionando com lusos e castelhanos, foram construindo referências históricas que o tempo encarregou-se de não questionar e transformaram-se em "verdades".
Assim, o "Bacharel" nômade, mercenário e aventureiro, transformou-se em referência para sítios geográficos fixos de forma equivocada.
A GUERRA DE IGUAPE
A insistência histórica em torno do termo "cananéia", era alimentada pela vinculação entre um sítio geográfico e um personagem. Em especial, ao homem que navegava e se fixava ora numa região ora em outra, com suas mulheres e amigos índios. Este homem era Cosme "Bacharel" Fernandes. Enquanto a frota de Martim Afonso de Sousa deixava a ilha do Bom Abrigo [então erroneamente chamada de Cananea] em agosto de 1532 "para seguir viagem ao rio da Prata" como escrevera Pero Lopes de Sousa, para naufragar poucos meses depois nas costas do atual Uruguai, e regressando com o resto da frota para São Vicente, antes porém, passando pela ilha de Santa Catarina para alguns aprontos.
Enquanto isto, uma expedição espanhola comandada pelo cruel e sangüinário Francisco Pizarro alcançava Cuzco, no Peru, a capital do Império Inca via a costa do Pacífico, e aprisionava o lendário "Rei Branco" Atahualpa. Era a conquista considerada por muitos como sendo a "mais extraordinária façanha da história do Novo Mundo". Ora, esta era também a ambição da Coroa Portuguesa, e a principal missão de Martim Afonso, alcançar a cobiçada Serra da Prata e os tesouros do Rei Branco, seja por terra (pelo Caminho do Peabirú) ou por mares e rios (Atlântico Sul , Rio da Prata e seus afluentes).
Quando a notícia chegou aos portugueses o desânimo se abateu, não só em Lisboa como no recém donatário daquelas terras da chamada "Costa do ouro e prata", por presumirem-se sair das latitudes 25 e 26° os caminhos terrestres que chegar-se-ia no ambicionado tesouro. Pizarro chegara antes. E Martim Afonso abandonou suas terras e foi fazer fortuna na Índia. Os traficantes de escravos índios, degredados e aventureiros mais uma vez estavam sem lei e sem rei .Antes de partir para Lisboa, em meados de 1533, possivelmente por intermédio de Tibiriçá, chefe Tupininquim e seu aliado, Martim Afonso ainda recebeu outra péssima notícia: a expedição terrestre que enviara, chefiada por Pero Lopo, seu homem de confiança guiado por um dos "genros" de Cosme Fernandes, o espanhol Francisco de Chaves, fora dizimada .
Cerca de 80 homens foram mortos nas margens do rio Iguaçu após subirem a serra do Mar e alcançarem o já conhecido "Caminho do Peabirú", integrante da malha viária Inca.
Irado, Martim Afonso imediatamente suspeitou de Cosme Fernandes e seus "genros" desertores e degredados espanhóis que com ele viviam, pois como eram amigos dos Carijó, provavelmente teriam armado uma cilada à expedição lusa. Ao mesmo tempo que suspendia outra expedição que iria enviar ao planalto paulista sob o comando de Pero de Góis, ordenou o envio de um tropa ao reduto de Cosme, onde encontravam-se os espanhóis Ruy Moschera, ex-tripulante do navegante italiano à serviço de Castela Sebastião Caboto (filho de John Cabot ou Giovanni Caboto, que sob bandeira inglesa descobrira e alcançara a região de Terra Nova - atual Canadá).Intimado a comparecer à São Vicente para cumprir pena pela traição que cometera a Martim Afonso, Cosme Fernandes recusou-se , pois sabia que seria duramente interrogado por Pero de Góis sobre o massacre dos portugueses no interior do atual Paraná. Cosme e sua prole abrigam-se na povoação de Iguape onde o castelhano Ruy Mosquera estava vivendo, e não reconhecia a soberania portuguesa naquela região, e que a " estava ali povoado em nome do imperador Carlos V [de Espanha] , de quem era vassalo."[9]
Estava armado o conflito, que corsários franceses desavisados seriam as primeiras vitimas. Ancorados numa das baías da região, uma nau francesa refrescando-se com mantimentos e água, numa certa noite foram surpreendidos pelas canoas indígenas comandadas por Cosme e Moschera, de posse de marujos presos como reféns tomaram posse do navio e seus armamento e munições, equipando-se para o iminente confronto com os portugueses de São Vicente.O plano dera certo para os rebeldes do povoado de Iguape.
Esperando entrincheirados e armados pela tropa lusa, os índios flecheiros, arcabuzes e os canhões do navio corsário puseram em debandada cerca de 80 homens de Pero de Góis, que em seguida foram massacrados por outra tropa de índios leais a Cosme e Moschera, no local hoje atribuído com sendo a barra do rio Icapaça. O próprio comandante Góis fora ferido gravemente, abatendo mais ainda a tropa lusa. A euforia foi geral no pequeno povoado renegado. Não satisfeitos, embarcaram na nau francesa capturada e dirigiram-se a São Vicente, fundada por Martim Afonso, que havia regressado à Portugal.
Colocaram abaixo o pelourinho, símbolo da justiça colonial, abriram as portas da cadeia, e eliminaram qualquer vestígio de domínio luso do local. Mais de dois terços dos portugueses habitantes do povoado foram massacrados, de tal forma, que durante mais de uma década houveram dificuldades para reerguer a fundação, era a primeira guerra civil em território brasileiro, liderada por Moschera e pelo "Bacharel" e uns duzentos Carijó. Segundo o historiador Eduardo Bueno em seu livro Capitães do Brasil, "Dos 150 portugueses deixados por Martim Afonso no Brasil, cerca de 100 pereceram no confronto. Entre os mortos estava o náufrago Henrique Montes."[10]
Os anos que se seguiram na região foram de abandono e esquecimento pelos donatários das capitanias, que enriqueciam governando Goa ( a partir de setembro de 1534), o entreposto dos portugueses na Índia. Passava então à sua mulher e castelhana D. Ana Pimentel, a administração das terras que aqui deixara (as Capitanias de São Vicente e Rio de Janeiro).
Pero Lopes de Sousa faria o mesmo, antes de partir para a Índia, onde morreria em 1541, nomeou sua jovem esposa , a rica D. Isabel, a donatária das terras que recebera no Brasil, incluindo a Capitania de Sant'Ana, que iniciava-se na ilha do Mel, na barra da baía de Paranaguá.A chamada "Guerra de Iguape" espalharia os portugueses, castelhanos e seus filhos mamelucos pelas ilhas e recantos do complexo estuário da baía de Paranaguá, temendo futuros conflitos e uma revanche lusitana.
Litoral do sul de São Paulo e do Paraná: Atlas Miller (1519?)
O castelhano Moschera mudara-se com alguns Carijó para o Porto de Patos [em frente à ilha de Santa Catarina], enquanto que por muito tempo, as referencias do paradeiro do " Bacharel" desaparecem por volta de 1537.
Segundo Eduardo Bueno, ao mencionar opiniões de pesquisadores, o "Bacharel" teria sido morto pelos seus amigos índios Carijó. Ocorre que a premissa bibliográfica utilizada pelo autor não é a mesma que utilizamos para esta pesquisa. Em 1542 deixaria terras para seus descendentes no Porto das Naus, São Vicente. Com isso, a fixação histórica e erros de pesquisa, induziram a erro eminentes historiadores brasileiros, que tornaram-se referências para escritores internacionais.
A então "Costa do Ouro e Prata" seria abandonada pelos portugueses por quase duas décadas, enquanto nascia e se multiplicava na região, um povo remanescente daqueles primeiro aventureiros.
[1] ALMEIDA, A.P. op.cit (1963).
[2] BUENO, Eduardo. Op.cit. ( 1998, p.49)
[3] BUENO, Eduardo. Op.cit. ( 1999, p.86 )
[4] Idem ( p.122 )
[5] CASAL, Aires do ( op.cit., p. 228).
[6] Op.cit. (1998, p.159)
[7] Carta existente no Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, Espanha.
[8] Op.cit. (1998, p.159)[9] BUENO, Eduardo (1998, p.97)
[10] Op. Cit. (p.98)