VESPÚCIO E UM BIÓGRAFO
Um dos mais interessantes biógrafos de Américo Vespúcio foi o
colombiano Germán Arciniegas (Bogotá, 06/12/1900 a 30/11/1999), com sua
fantástica obra Amerigo y el Nuevo Mundo,
publicado em 1955 na cidade do México pela Editorial Hermes. Professor do
departamento de espanhol da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, além de
fazer parte do Seminário do Renascentismo, Arciniegas desenvolveu profunda
pesquisa sobre homem e navegador florentino Amerigo
Vespucci diretamente nas melhores fontes: Florença, Roma além de
bibliotecas europeias e interagir e debater com estudiosos italianos.
Germán Arciniegas
Sua obra não é conhecida no Brasil, tampouco traduzida, o que
me propus a fazer e brindar os leitores com estas peças raras da história da
América, em especial da sua costa e gente do Atlântico Sul.
Boa navegada!
AMÉRICO VESPÚCIO: DO
BRASIL À PATAGÔNIA – 1501 A 1502 (Parte 1)
Passando pela Baía de
Paranaguá, suas praias e a assembleia de marinheiros.
Descendo a costa do
Novo Mundo e sua gente
Quando os leitores das Cartas de Américo se depararam com
esta passagem, ficaram mais impressionadas do que nenhuma outra. Entre 1502 e
1503 se desenhou um planisfério que permaneceu inédito até o ano de 1859,
quando o padre Kunstmann publicou um famoso atlas em que reproduziu os mapas
mais importantes feitos no século XVI em Espanha e Portugal. A alguns destes
mapas anônimos se deu o nome do padre Kunstmann para identifica-los. Kunstmann
II ao feito entre 1502 e 1503. Sem dúvida, o autor se apoiou na viagem de
Américo Vespúcio.
A costa do Brasil e da Argentina estão desenhadas até mais
abaixo dos 45° Sul (Patagônia Argentina). Tão interessante como a linha da
costa são as ilustrações. Dominando o interior do Brasil, há uma cena
cuidadosamente desenhada: é um assador que um índio ajoelhado faz girar
suavemente, e na fogueira assando um cristão (como eram chamados os europeus
para diferencia-los dos nativos) desnudo que vai tostando-se entre as chamas.
Este desenho se repetirá a seguir em outros mapas.
Américo escreveu algumas considerações a antropofagia. Dizia
que nas guerras costumava-se a comercializar-se inimigos que eram prisioneiros.
Que as mulheres, depois que eram usadas por algum tempo, eram flechadas com
todos seus filhos em grandes festas em que celebravam as vitórias ocorridas.
Dizia que enfeitavam as habitações com presuntos feitos de pernas humanas
defumadas. Que os índios vencedores mantinham crianças engordando para
enriquecer suas despensas. Compadecidos, disseram comprar uns dez que “estavam
destinados ao sacrifício, por não
dizer o malefício.”[1]
A gente nativa da
costa do Brasil
Conta Américo, que os homens costumavam perfurarem-se os
lábios e as bochechas para colocarem pedras de alabastro verdes e brancas,
algumas largas com meio palmo e redondas como cerejas catalãs. Tinham este
costume brutal, mas reconhecia que as pessoas eram saudáveis e viviam muitos
anos. O tempo, disse, eles contavam pelas luas, colocando uma pedra para cada
lua. “Encontrei um velho que me mostrou com pedras, ter vivido 1.700 luas, que
são 132 anos. ”A relatividade destes cálculos se deve compreender pelas
condições em que Américo recolhia seus dados, e a margem que deixava, sem
ocultar, à fantasia do leitor. A vida ao ar livre quando menos, eliminava as
pestes e doenças que ele conhecera em Florença. Que diferença entre o ambiente
da natureza tropical e a vida das cidades saídas do mundo medieval! Américo
escreve de seu novo mundo: “Aqui um médico morreria de fome”.
Livro original: Amerigo y el Nuevo Mundo (Editorial Hermes, 1955, México).
Mais do que ouro e
riquezas, a natureza.
Brilha por sua ausência, como sempre, o relato de Américo
pela questão do ouro. Segue sendo este uma característica o distingue de
Colombo e dos demais conquistadores. Mas, além disso, agora a combina com
alguma fina observação irônica. Ele declara que o Rei (de Portugal) os enviou
para descobrir, e não para buscar proveitos imediatos. Descobrir implicava, certamente, observar as
riquezas que houvessem, mas Américo se pôs cauteloso contra os cálculos
ilusórios que pudessem leva-los a falsas especulações.
Desde logo, disse, a terra há de ter riquezas que os nativos
não se apressam em ostentar no que os europeus mais interessam. Eles apreciam
mais as plumas que o ouro e a prata, e o Rei de Portugal terá muito o que
aproveitar da nova colônia. Os homens do país costumam falar: “Contam do ouro e
de outros metais e drogas muitos milagres. Eu sou daqueles que, como Santo
Tomás, andam devagar para crer”.
O que primeiro saltava à vista era um reino vegetal. Outros
mapas que se desenharam seguindo os relatos de Américo incluíram, além do
cristão europeu assado na fogueira, árvores e papagaios. Américo fala do
pau-brasil (verzino em italiano)e da
canafístula. De pedras encontrou muitos cristais que não conhecia. De ervas e
especiarias, muitas também. Mas, ele declarava ignorar para que poderiam
servir.
O deslumbramento pelas
novas terras
Não é difícil imaginar a emoção à medida que iam descobrindo
os acidentes da costa: os cabos, as baías, as bocas de rios, as ilhas. Iam com
o almanaque[2]
formando seu catálogo de surpresas. Vivian uma espécie de loteria mística: o
que nos trará amanhã São João? E Santa Lúcia? Era milagre de cada santo a
surpresa geográfica escondida em cada dobra da costa. Assim, os nomes não eram
dados pelo comandante da frota, nem eram sugeridos pelos pilotos, eles saiam do
calendário católico.
Em 28 de outubro de 1501 avistaram um cabo, era dia de Santo
Agostinho, e foi batizado a atual Cabo de Santo Agostinho (Pernambuco, Brasil).
Ele nos dava, a Ele lhe pertencia. Em cada nova parada, um sopro de um anúncio
cristão beijava a costa. No dia 16 de
outubro, dia de São Roque, Cabo de São Roque. Em 1o. de novembro,
dia de Todos os Santos, Baía de Todos os Santos. Este foi um presente do céu
para Américo, pois era filho de uma paróquia de Todos os Santos em Florença,
sua terra natal. Em 13 de dezembro, que nova maravilha! Era dia de Santa Lúcia,
e na realidade a paróquia de Florença se chamava de Santa Lúcio de Todos os
Santos. Então foi Rio Santa Lúcia. A data 6 de janeiro também era para Américo
uma data querida: a dos Santos Reis. O tema dos pintores florentinos: a cena
maravilhosamente tratada por Benozzo Gozzoli na capela do palácios dos Médici.
A data festiva caiu exatamente em uma entrada do mar: a Baía dos Reis (atual
Angra dos Reis). E assim tudo aconteceu: No dia 1o. de janeiro de 1502,
o rio de Janeiro: Rio de Janeiro. No dia 20 a ilha de São Sebastião (litoral
norte do atual estado de São Paulo, Brasil). Em 22 o estuário e abrigo de São
Vicente (ao lado da atual cidade-porto de Santos, na latitude 24° Sul).
Um evento marcante: Em
terras de Espanha, Américo assume o comando.
No dia 15 de fevereiro de 1502 ocorreu um acontecimento
notável na expedição, e mais ainda na biografia de Américo. Já haviam
transcorridos dez meses de navegadas e andanças por água e terra e não se via o
término da viagem. Haviam descido tanto ao sulque já estavam abaixo do Trópico
de Capricórnio[3] . Não
haviam encontrado nenhuma grande cidade, nenhuma mina. Nada das histórias do
oriente. Amarraram os barcos, se sentaram na praia e formaram uma assembleia de
tripulantes, uma plenária aberta, um conselho de descobridores peregrinos, de
companheiros. Não deliberaram como rebeldes ou amotinados. Ninguém fez cara de
soberbo. Todos sabiam que a viagem não havia sido para buscar ouro, mas sim
para achar os caminhos do Atlântico. Haviam visto o mundo que Cabral havia
deixado ainda virgem, e isso já pagava a aventura.
Américo Vespúcio não mostrava nenhum ar de desencanto. Tinha
a convicção de que esse mundo formidável, em sua simples grandeza florestal,
era a geografia que se expandia, a experiência do homem que ia ampliando-se .
Se falou, falaram todos. Falaram até os mais humildes
marinheiros que tivessem algo pra dizer. E se perguntaram: Seguimos?
Surgia, além disso, uma questão imprevista. A costa se movia
em direção Oeste[4], e
as novas terras ficavam fora do da zona em que, legitimamente, poderia o Rei de
Portugal conquistar. Em maio de 1493, por causa da primeira viagem de Colombo,
os Reis Católicos obtiveram do Papa as bulas que fixavam as repartição das
ilhas ou terras firmes que se descobrissem daí em diante. O meridiano de
Alexandre VI corria a partir de cem léguas para o ocidente das ilhas dos
Açores. Deste meridiano para o oriente, seria tudo de Portugal, e para o
ocidente seria para Espanha. O Rei de Portugal Dom João II se opôs a esta linha
traçada e buscou uma partilha mais conveniente para ele, através de um acordo
direto com os monarcas espanhóis. Os Reis de Espanha aceitaram a mudança que se
concretizou no Tratado de Tordesilhas, de 1494. Por este tratado a nova linha
se deslocava 270 léguas mais para o ocidente. Assim, viria a justificar-se mais
tarde que os descobrimentos feitos na costa do Brasil se pusessem sob a
bandeira de Portugal.
Meridiano de Tordesilhas: de Belém à Paranaguá (linha amarela)
A escala dentro da
baía de Paranaguá: uma hipótese real.
Voltando a Américo Vespúcio, no mesmo ponto em que agora os
marinheiros deliberavam, a costa saía da jurisdição portuguesa e se inclinava
ao que pelo novo direito tratado, corresponderia a Castela.
Não sabemos com exatidão quem era o comandante da frota. Se
presume que era o português Gonçalo Coelho. De acordo com o Tratado de
Tordesilhas, “se os navios do dito Senhor Rei de Portugal acharem quaisquer ilhas
e terras na parte dos ditos senhores Rei e Rainha de Castela, de León e Aragón,
etc. Que tudo seja e permaneça para o ditos senhores Rei e Rainha de
Castela...”. Em outras palavras, daí em diante, e se a costa não voltava a
direcionar-se para o oriente, eles iam descobrir para Castela. O comandante
português da frota deixou o mando.
“Feito nosso conselho – narra Américo - se resolveu que se seguisse aquela navegação
que me parecia bem, e foi posto a mim todo o comando da frota.”
Pela primeira e única vez, Américo foi comandante de uma
frota. Não foi a escolha de um rei, nem ganhou o comando por um golpe ou motim.
Ele havia sugerido a rota que devia se seguida, havia acertado com suas
orientações, era o cosmógrafo, e os comuns o aclamaram.”
Esta data de 15 de fevereiro de 1502 merece ficar no
calendários da América com a de um dia clássico. É extraordinário que, na
primeira assembleia democrática celebrada em terra firme, não houvesse ocorrido
uma luta violenta, mas sim, direcionaram os votos à favor de quem havia bebido
seu conhecimento na luz das estrelas.[5]
O que Américo lhes oferecia? Não lhes convidou para
perseguirem um futuro de riquezas, mas sim de uma brava aventura, e o fez
quando estavam entregues à fadiga e ao cansaço. Ficaram apaixonados por uma
expedição que se dirigia para a terras que somente podiam oferecer uma possível
passagem para o oriente. Na história de López de Gómara, se disse que “Américo
Vespúcio, florentino, foi enviado pelo Rei Manuel de Portugal às costas do cabo
de Santo Agostinho no ano de 1501 com três caravelas para buscas nestas costas,
uma passagem para as Molucas.”[6]
“Então, mandou que toda e gente a frota se provesse de água e
lenha para seis meses, pois esse tempo estimaram os oficiais dos navios, que
poderiam navegar nelas.” Assim se aprontaram e içaram velas a caminho das
costas argentinas.
[1] Gravura da primeira representação conhecida dos
costumes no Novo Mundo, gravado com legenda em alemão, cujo original está na
Biblioteca Pública de Nova Iorque, reproduzida por Steven em American Bibliographer, pp.7,8. É uma
cena de antropofagia baseada no relto de Américo Vespúcio.
[2]
Almanaque: Livreto derivado para palavra árabe al-manakh. Em Portugal, foi editado o
primeiro na data de 1496: Almanach Perpetuum de Abrão Zacuto, impresso
em Leiria. Fornecia tábuas logarítmicas e outras indicações com respeito ao
curso do sol para cada dia do ano. As informações eram para ser utilizadas em
concordância com os instrumentos astronômicos, além de que a Igreja Católica
nominava um santo para cada um dos 365 dias do ano. Era uma das referências
para batizar os acidentes geográficos.
[3] Trópico de Capricórnio: É a linha imaginária que divide
o globo terrestre em duas partes ao sul da Linha do Equador. Está situado na
latitude 23° 26’Sul, na altura do Rio de Janeiro. Divide o hemisfério sul em
zonas de clima tropical e temperado
[4] A navegada da Baía de Todos os Santos até Cabo Frio,
a bússola aponta na faixo dos 190° Sul. Até o Rio de Janeiro, vira mais para
Oeste em direção aos litorais de São Paulo e Paraná, oscila para 240° Sul,
indicando que estava ‘entrando’ para Ocidente, e que possivelmente estavam
rompendo o Meridiano de Tordesilhas, cuja linha descia de Norte para o Sul na
longitude 48° 30’ Oeste, que pelos instrumentos atuais de navegação atuais,
possível confirmar a linha entre os portos de Belém-PA e Paranaguá-PR.
[5] Na entrada da baía de Paranaguá, situa-se a Ilha das
Peças, com ancoradouro e seu rio de agua doce para aguada dos barcos e
fundeadouro natural para naus do porte da época. Além de praias, está no limiar
do que seria a linha imaginária do meridiano de Tordesilhas. A entrada da baía
é franca, tendo sua parte mais estreita (entre ilha do Mel e das Peças) quase
uma milha náutica, alinhada perfeitamente para a entrada de vento de popa
(Leste) ou de través (Nordeste), como se velejava à época. Ventos estes
predominantes na região, especialmente no mês de fevereiro (verão no hemisfério
Sul).
[6] López de Gómara é o autor de Historia General de las Indias (p.211) na Biblioteca de Autores
Espanhóis. Ao citar “Molucas”, refere-se as ilhas correspondentes à província
das Molucas do Norte, na atual Indonésia. Eram chamadas "Ilhas das
Especiarias". Nos séculos XVI e XVII a região era a única fornecedora
mundial de noz-moscada e cravo-da-índia, especiarias extremamente valorizadas
nos mercados europeus, vendidas por mercadores árabes à República de Veneza a
preços exorbitantes. Sua localização era segredo bem guardado pelos negociantes, pelo que nenhum europeu
conseguia deduzir a sua origem.